Iniciemos com Maradona. Maradona fez a festa para os
militares durante a ditadura na Argentina...mas quando
não pôde entrar nos EUA devido a sua má imagem de
viciado adquiriu então "consciência política". A
consciência política dele tem tanto valor quanto um copo
de papel descartável. Continua sendo um artista de
circo, só que dessa vez o picadeiro não é nem o gramado
nem a televisão, é a cena política. Sua autenticidade é
zero.
Coloquemos ali, também, Pelé. Pelé costuma falar de si
mesmo na terceira pessoa, estabelecendo o binômio
Edson-Pelé, e talvez faça isso como um inconsciente
reconhecimento de sua própria insignificância, sua incapacidade de colocar-se no cenário social
à altura do que foi em campo. Figura de expressão
mundial pelo que realizou no futebol, o maior jogador de
todos os tempos funcionou, mesmo que involuntariamente,
como garoto-propaganda do "Brasil milagroso" forjado
pelos militares na ditadura, jamais levantando a voz
contra as monstruosidades daquele período nem
emprestando sua influência a favor das lutas libertárias
de lugar algum. Foi o emblema mais perfeito do "não me
comprometa"; só não sabemos se assim procedeu por oportunismo primário
ou por ser um simplório inveterado.
Pelé
e Maradona são, portanto, duas figuras muito abaixo,
como pessoas, do que aquilo que a sua arte projetou no
mundo.
Algo
semelhante foi o capitão Dreyfus na França. Dreyfus
mobilizou meio mundo contra e a favor dele, mas, ao
fim, uma vez libertado e corrigido aquele que foi
considerado o maior erro judiciário de todos os tempos,
revelou-se uma pessoa das mais medíocres, pois, em vez
de aproveitar a involuntária evidência que sua vida
alcançou, e tornar-se um porta-voz dos direitos e
liberdades, tudo que esse minúsculo personagem desejava
era voltar ao exército que tanto maculou a sua imagem e
ter aquela vidinha limitadamente programada da caserna.
Enfim, foi homem muito pequeno para a dimensão na qual o
destino o inseriu.
Charles Lindemberg, o aviador que cruzou sozinho pela
primeira vez o oceano indo dos EUA à Europa, foi
recebido e ovacionado como herói pelo feito, abrindo
assim novos horizontes para o mundo através da aviação.
Avesso às grandes manifestações públicas, esse "herói"
dava a impressão, em seu feitio lacônico, de guardar um
espírito profundo, mas tal aspecto revelou-se depois
nada mais que um temperamento sem maior conteúdo, de
modo que quando seu filho foi raptado e assassinado, o
pequeno homenzinho, irritado com o procedimento
democrático do Estado de Direito, tornou-se um inimigo
figadal da democracia. A democracia para ele era
culpada, pois só ela impedia a execução sumária do
suspeito e ele não conseguia, em sua limitação de homem
de ação, compreender a "tão confusa teia dos
princípios" que se encontravam na base de tudo aquilo,
o que nada mais era senão os direitos e garantias
individuais, entre os
quais estava a ampla defesa com o consectário do devido
processo legal. Assim, Lindemberg voltou sua
simpatia para os regimes totalitários e chegou a viajar
à Alemanha nazista a convite dos alemães, e sua esposa
ainda escreveu um livro a favor do totalitarismo.
Durante a guerra Lindemberg lutou contra os alemães,
mas sua imagem pública já estava irremediável e
merecidamente reduzida àquilo que nunca deixara de ser:
um intelecto medíocre dentro de uma alma corajosa; se
sua vida mereceu um parágrafo nos livros de história foi
somente por esse último predicado.
Ayrton Senna é outra personalidade vazia que
recebeu tratamento de herói sem ter realizado nenhuma
façanha especial fora das pistas. Uma jornalista na
ocasião de sua morte suscitou a indignação geral ao
chamá-lo de peão de multinacional. Hoje, passada a
emoção daquele momento, cabe perguntar: era ele
realmente mais do que isso? Sua atuação servia
principalmente à divulgação da marca que representava, o
que corrobora a frase da jornalista. Não obstante, Senna
agitava a bandeira do Brasil a cada vez que subia
ao pódio, conotando suas vitórias com uma contagiante
emotividade patriótica que, sincera ou não, também
funcionava como excelente marketing. Seu patriotismo,
entretanto, salvo algumas ações assistenciais utilizando
recursos ínfimos em proporção a seus ganhos, não recebeu
nunca maior engajamento, seja político ou social, do que
capacetes com bandeiras e bandeiras desfraldadas. Sua
irmã, no enterro, disse que morrera um herói mas nascera
uma nação. Pergunta-se: que heroísmo teve Senna? Correu
ele, arriscou-se a 300 km p/h pelo Brasil ou por seu
bolso?
Outra frase amiúde repetida é "tudo aquilo que Ayrton
Senna fez pelo Brasil..." Entende-se perfeitamente essa
idéia de realização transpessoal do atleta: num ambiente
de desagregação moral capitaneada pelo Estado e por
aqueles que deveriam ser os guardiões do que há de mais
elevado na Nação, os atletas assumem o papel de
elementos puros, remontando aos paradigmas da Grécia
Antiga, onde o atleta era considerado como o que de
melhor havia na sociedade. O povo, descrente das
instituições, reserva no atleta seu último bastião,
associa ele às virtudes da Nação e adquire
momentaneamente, com as vitórias dele, a identificação
com a pátria. Mesmo que falemos todos mal do Brasil,
na hora de sua vitória nos identificamos e nos
orgulhamos de sermos brasileiros. O atleta não é até aí
mais que um agente dessa reação, e, como demonstrado, na
maior parte das vezes está muito aquém, como pessoa, do
papel que assume aos nossos olhos. Passada a euforia das
vitórias, retornamos ao de sempre, e, dificilmente
qualquer melhoria moral pode ser observada na vida do
país, não há
nenhuma diminuição da corrupção e dos crimes diários que
lesam a economia e a administração pública, enfim, de
nada adiantam esses exemplos.
O jogador de futebol Leonardo, campeão mundial de 1994, queria aproveitar essa ascendência
dos jogadores de futebol sobre o povo articular uma ação
política de conscientização conjuntamente com outros
jogadores de renome, mas na época sua iniciativa
foi recebida friamente, tendo ainda a opinião contrária de
Wanderlei Luxemburgo, que não tinha a mínima condição
intelectual de compreender a nobre proposta. Para estar
à altura do que sua própria imagem significa para o
povo, o atleta notório deveria fazer consciência e
canalizar essa força para o fortalecimento de uma
consciência crítica, mas, como visto, na maior parte das
vezes a mediocridade grassa e sua vida pessoal não é nem
a sombra do brilho que possui no esporte.
É
nesse ponto que podemos finalmente falar de um dos
únicos grandes atletas da história, que fugiu desse
padrão de mediocridade pessoal: o fabuloso Casius Clay,
vulgo Mohamed Ali. Ele foi um gigante dentro e fora dos
ringues. Basta conferir a sua vida. Vejamos: no auge da carreira dá o
troco a uma sociedade que segrega os negros, diz que não
lutará na guerra do Vietnam por um país onde os de sua raça são
discriminados mas servem para morrer por ela, repudia a
religião dos brancos onde a figura central é um branco
de olhos azuis, troca seu nome ocidental por um nome
islâmico correspondente a uma religião que jamais tivera
preconceito racial contra os homens de cor, rompendo
assim com as suas mais elementares origens. Por tudo isto
desperta a ira do establichment, perde sem lutar sua
posição no ranking mundial de box, é processado, sofre todo tipo de
revés (muito ao contrário dos atletas de hoje em dia
que, possuem até assessoria de imprensa e
compromisso com a imagem de "bom moço" para vender
produtos). Em troca Mohamed Ali ganhou uma altura humana
indelével com seu gesto rebelde, arriscando tudo o que
havia conseguido em nome de um ideal. Perdeu naquele
momento o cinturão do box para ingressar na história.
Que comparação tem por exemplo com ele Pelé, ou qualquer
um desses acima que nada sacrificaram ou arriscaram, de
nada renunciaram em prol de nenhuma causa? Somos capazes
de imaginar, por exemplo, Pelé deixando de ir para a
seleção como protesto contra alguma coisa ou Senna
renunciando aos seus milhões em nome de algum ideal
maior? Muito ao
contrário, todos eles buscam não se envolver para não se
comprometer. Via de regra, os atletas no Brasil "foram
sempre governo".
Os
EUA e quem sabe o mundo mudaram mais, e para melhor, com
as atitudes e a assunção política de Mohamed Ali do que
com as mirabolantes jogadas de Pelé ou Maradona. Por
este ponto de vista, Mohamed Ali é quem merece,
verdadeiramente, ser chamado de
"Atleta do século"
Rio,
05/11/2005
Félix
Soibelman é advogado no Rio de Janeiro e editor e
atualizador da Enciclopédia Jurídica Soibelman